Hoje em dia a "Curvatura do espaço" é uma expressão quase coloquial. Se alguém quer posar de erudito, discorre a respeito das suas consequências. Matérias em jornais e revistas de divulgação falam a respeito como se fosse a coisa mais natural. "Então, você não sabe por que o espaço é curvo?" Essa é uma perguntas mais temidas do "pacato cidadão". Todos em sua volta param de falar, beber, e põem seus olhos de desprezo ou estupefação. "Você não conhece a Teoria da Relatividade Geral de Einstein"? Pronto! Agora pegaram você. Se você passar por essa humilhação provavelmente não vai querer mais sair de casa se não quiser ser alvo dos dedos lhe apontanto e ouvir na surdina, em escutas dissimuladas, "daquele esquisitão que ainda vive na Idade Média".
Pois pode contar com meu apoio. Eu sou daqueles que não sentem a menor vergonha de perguntar o que quer que seja! Haja visto a seção Tolas Perguntas em minha homepage. Por isso, em função das centenas de situações de chacota em que eu me encontrei, se você, um dia, me perguntar o que quer que seja, eu vou tentar explicar com toda a paciência que encontrar (é bem verdade que não é muita). Nenhuma pergunta é imbecil a ponto de não parecer muito profunda e nenhuma é profunda o suficiente para não parecer imbecil. Depende de quem ouve. Uma vez cheguei a um colega meu e perguntei: "O que é um pixel"? Surpreso, o dito colega exclamou: "Isso não pode ser sério"! Era. O que surprendia meu colega era que ele me respeitava por trabalhar já havia tempo com instrumentação, desenvolvimento de equipamentos, desenvolvimento de softwares para tratamento de dados, enfim, alguém que ele supunha "dar aula a respeito do que é um pixel". O fato é que eu já havia aprendido que postergar o aprendizado de alguma coisa, por mais imbecil que possa parecer, custa muito caro no futuro. Um emprego, um projeto pode ser comprometido por esses falsos saberes que as pessoas insistem em representar. Felizmente meu colega não representava, e me respondeu solenemente: "Pixel é um ponto de uma matriz contendo informações de uma imagem". Bela resposta! Não precisei saber mais nada, a respeito, desde então.
Voltando à questão da curvatura do espaço, descubro, a cada dia que passa que a compreensão do assunto escapa mesmo daqueles mais versados no assunto. Um dia li um artigo em uma revista de divulgação que uma grande pesquisa foi levada a cabo por desses grandes institutos da NASA (tudo da NASA é grande e melhor, parece até a Rede Globo!) mostrou que o espaço era "plano" a menos das regiões em torno das grandes massas. Francamente! Isso até parece papo de intelectual bêbado! Permita-me a sinceridade, mas nós, humanos nunca perderemos essa irresistível tendência a tudo mistificar. Pois a tal "Curvatura do Espaço" parece-se com aquele Ser que permeia por todos os lugares sem que se tenha alguma compreensão de sua natureza. Isso mesmo, temo que, pelo andar da carruagem, a tal "Curvatura" transforme-se no próximo candidato ao lugar de Deus.
Por favor! A questão não é tão misteriosa. Para discorrer-la vou usar a velha técnica de Platão, depois retomada por Galileu, e hoje usado à larga por Paulo Coelho, de idealizar um diálogo entre o mestre e seu ignóbil discípulo. Essa forma é prática pois permite uma estrutura dramática estática e, por isso mesmo didática, de jogar toda a ignorância ao discípulo e todo o saber ao mestre. Vamos supor que o discípulo, "Ávido" seja um desses que se surpreende com a pergunta idiota e procura seu mestre, "Impávido" e lhe coloca a pergunta: "Mestre, como posso explicar ao leigo o que é curvatura do espaço"?
Mestre Impávido pára de trabalhar em seu experimento de ondas gravitacionais e calmamente vira-se para seu discípulo Ávido.
- Antes de responder-lhe, você terá de abrir sua mente e abandonar todos
os seus preconceitos e pré-julgamentos.
- Sim, Mestre.
- Lembre-se, sempre, que estamos falando do
quadri-espaço-tempo, e não do espaço, no senso comum, ok?
- Claro, mestre! - Diz Ávido entre surpreso e assustado.
- Pois bem, pegue aquela peça em cima da mesa. Não, não! O peso, não o
grande, o menor! Muito bem. Agora pegue o lápis, o papel e sente-se aqui, no meu lado esquerdo.
Ávido obedeceu o mestre pois era um bom discípulo e sabia que seu mestre não gostava de ser contrariado. Continuou mestre Impávido:
- Pegue esse peso de papel que você tem na mão e lance de tal forma que
a peça alcance a altura de 1,5 metros. Você consegue?
- É claro, mestre. - Respondeu Ávido, com a arrogância dos ignorantes. Lançou
a peça que atingiu o teto da sala, muito acima de 1,5 m e quase caiu sobre uns tubinhos de
ensaio na mesa em frente, por pouco não matando mestre Impávido do coração. Em seguida,
envergonhado, lançou a peça com menor ímpeto que atingiu uma altura muito próxima de 1,5 m.
- Muito bem. - Disse mestre impávido, refeito do susto. - Será que, agora, você
será capaz de saber com que velocidade você lançou essa peça?
- É claro, mestre! Só não sei qual a relação entre isso e a relatividade geral...
- Paciência, meu filho. O saber exige paciência para obtê-lo.
- Sim, mestre. - Em seguida Ávido fez uns cálculos rápidos e mostrou-os ao
mestre que se já voltava ao seu experimento de ondas gravitacionais.
- A velocidade de lançamente é, exatemente a raiz quadrada de 30, se
considerarmos que a aceleração da gravidade é 10 m/s2. Cheguei a essa
conclusão usando a conservação de energia mecânica, igualando o ganho em energia
potencial à energia cinégica no lançamento. Desprezando-se, é claro, as perdas de energia
devido o atrito do ar.
- Muito bom, agora me diga quanto tempo essa peça precisou para subir até os
seus 1,5 m e voltar à sua mão. - Disse, impaciente, mestre Impávido, para o desapontado
discípulo, que se já se entusiasmava com seu discurso. Quase imediatamente, Ávido respondeu:
- Pelos meus cálculos, 0,548 seg.
- Atenção! Pense bem. - O ar de mestre Impávido era de satisfação com o ato
falho de seu discípulo. - A viagem é de ida e volta. Você calculou apenas para a ida.
- Ah, sim! Desculpe-me, mestre. - Ávido estava frustrado. - O tempo total
é de 1,095 seg.
- Ótimo. - Agora, construa uma tabela da altura dessa nossa pequena peça
em funçao do tempo, tomando intervalos de... 0,2 seg, vai. - Querendo, assim, ser generoso
com seu discípulo. - Em seguida construa um gráfico
colocando o tempo nos eixos das abscissas e a altura nas ordenadas.
- Mestre, o que você está pedindo é...
- Cale-se e faça o que digo! - Disse Impávido com impaciência.
Ávido iniciou o trabalho já arrependendo-se de ter feito a pergunta. Afinal, tudo aquilo era mais do que conhecido dele. Tinha feito o mesmo trabalho centenas de vezes no secundário. Voltar a fazer coisas tão triviais o deixava humilhado. Às vezes, Ávido chegava a pensar que seu mestre o fazia de palhaço. No entanto, fazia tudo o que o mestre pedia pois este não cansava de repetir. "Parece fácil? Tanto melhor. Vai facilitar no final". Terminou a tabela e mais para provocar seu mestre mostrou-lhe, sob pretexto de conferir para "não errar no gráfico". A tabela era:
Tempo(s) | Altura(m) |
---|---|
0 | 0 |
0,2 | 0,895 |
0,4 | 1,391 |
0,6 | 1,486 |
0,548 | 1,5 |
0,8 | 1,182 |
Mestre Impávido olhou a tabela com aparente atenção. Conferiu, como se
fosse a primeira vez que conferia uma tabela de alturas de uma peça sob ação da gravidade.
Em seguida, comentou:
- Ótimo. Agora... o gráfico!
Ávido pôs-se a desenhar o gráfico e apresentou-o ao mestre. Não fora feito com esmêro, mas mestre Impávido ficou satisfeito. Em seguida, pegou uma caneta vermelha e marcou a curva, conforme a figura (é bem verdade que nem Ávido, nem seu mestre Impávido eram bons desenhistas, mas como o mestre dizia, isso até que ajudava a abstração):
Mostrando o gráfico a seu discípulo, mestre Impávido exclamou:
- Agora estamos em condições de entender a curvatura do espaço. Olhe essa
curva.
- Mas mestre, isso é uma paráb...
- É a curvatura do espaço-tempo.
- ??
- Não se esqueça que é o espaço-tempo, meu rapaz.
Ávido não queria acreditar.
- Mas mestre, isso é física clássica!
- Não, meu rapaz. Isso é Relatividade Geral.
Mas Ávido quis insistir:
- Mestre! E a transformação de Lorenz, e o espaço de Minkowski, e o tensor
momento-energia...???
- Isso. - Disse mestre Impávido, interrompendo o discípulo mais uma vez. - Parece
que você conhece muito bem! - E assim, mestre Impávido retornou ao seu trabalho,
concentrado, como se nunca tivesse sido interrompido.
Ávido refletiu muito a respeito daquele diálogo. Aprendeu, finalmente, que a excessiva dedicação a conceitos abstratos pode nos cegar e nos distanciar dos conceitos mais simples. Ávido aprendeu com seu mestre, que, interrompendo um trabalho tão importante, pregou-lhe uma peça que não cairia se fosse um pouco mais humilde.
Desse dia em diante, Ávido deixou de olhar com desprezo aqueles que fazem perguntas "idiotas".